Efeitos da exclusão da repatriação

10/06/2019

Efeitos da exclusão da repatriação
Valor Econômico

Pierpaolo Cruz Bottini e Flavio Luiz Yarshell

O programa de repatriação instituído em 2016 trouxe alívio e desconfiança. Alívio porque permitiu que contribuintes com dinheiro não declarado no exterior pudessem acertar suas contas com o Fisco e afastar a ameaça de processo por evasão de divisas, falsidade e outros delitos. Desconfiança diante de uma sensação de que o Estado poderia usar de forma inapropriada as declarações de bens.

A princípio, não havia razão para insegurança. A lei da repatriação previu que a declaração não pode ser usada como único indício para apurações criminais ou para fundar procedimentos administrativos em relação aos recursos nela constantes. Ou seja, o contribuinte aderente ao programa está protegido de investigações, a não ser que elementos externos indiquem a ilicitude na origem dos bens.

Ainda há dúvida acerca da extensão dessa regra, mas uma situação merece maior reflexão: o caso dos contribuintes que ingressaram no programa sem os requisitos para tal, como os políticos ou condenados pelos crimes anistiados pela lei. Constatado o vício, o contribuinte é excluído do programa e perde os benefícios. Pode ser processado pela evasão de divisa, crime fiscal e lavagem de dinheiro.

Nesses casos, pode o Estado usar das informações contidas na declaração para processar o contribuinte? Os dados apresentados sobre números de contas no exterior, sua localização e valor podem servir de base para investigações ou o poder público terá de descartar tais documentos e partir do zero para apurar eventuais delitos?

A repatriação é uma convenção entre o Estado e o contribuinte, programada para produzir efeitos substanciais e processuais: o último informa seus ativos no exterior e se propõe a pagar os tributos correspondentes; enquanto o primeiro reconhece a regularidade fiscal e a anistia criminal. Aí, reside o sinalagma do negócio, essencialmente bilateral.

Se constatado, em momento posterior, que ao contribuinte faltavam os requisitos para o ingresso no programa, de duas uma: ou se pode dizer que o negócio jurídico não chegou a se consumar, dado que não a proposta de adesão não foi aceita; ou pode-se dizer que, tendo o negócio nascido com a adesão do contribuinte (tomando-se aí a instituição do programa como uma oferta dirigida aos contribuintes), há um fato superveniente que afeta a base objetiva do contrato, fulmina o respectivo sinalagma e inviabiliza sua continuidade.

Qualquer que seja a qualificação jurídica da situação figurada, o certo é que não há produção dos efeitos programados pela lei para o negócio; nem para o Estado e nem para o contribuinte. Frustrada a possibilidade de se proporcionar o benefício previsto pela lei, as informações prestadas pelo contribuinte, exclusivamente com base na expectativa daquele resultado (que se mostrou inviável), se tornam inutilizáveis para o poder público. As informações são ofertadas apenas na perspectiva da contrapartida dos benefícios fiscais e penais. Se essa contraprestação é recusada pelo Fisco, não pode haver aproveitamento de uma prestação - a que favorece o Estado e desfavorece o cidadão - sem a correspondente contraprestação. Há, aliás, inegável analogia com situações de colaboração premiada, convenção igualmente bilateral e sinalagmática.

A tal conclusão se chega não apenas pela teoria da formação dos contratos, mas pela prevalência da regra segundo a qual os contratantes são obrigados a guardar os princípios de probidade e de boa-fé também no momento de conclusão do contrato: a oferta de informações não pode ser vista como uma confissão espontânea porque o comportamento do contribuinte se dá na crença de que será anistiado. Em se tratando de relação entre contribuinte e Fazenda Pública isso é tanto mais evidente, pela necessária observância dos princípios da confiança legítima e da segurança jurídica.

Não bastasse isso, o programa em questão estabelece procedimento cujo escopo é a resolução consensual de um litígio. Assim, toda informação trocada entre as partes nesse ambiente está protegido pela confidencialidade. Do contrário, não haveria estímulo para a transação, obstada pelo temor e pela desconfiança de uma parte em revelar fatos que poderiam ser empregados contra si própria.

Isso tudo naturalmente não significa a imunidade do contribuinte. O Estado poderá buscar informações sobre seu patrimônio não declarado por outras vias, por cooperação internacional ou pela troca de informações. Mas não lhe será possível fazer isso com base na declaração pretérita. Qualquer uso, explicito ou implícito, dos dados oferecidos pelo contribuinte será ilícito e, portanto, absolutamente inválido e ineficaz.

Em suma, o contribuinte excluído do programa tem o status de qualquer outro que não aderiu à proposta. Está desprotegido de incursões penais decorrentes da não declaração, mas as informações prestadas não poderão ser base - inicial ou complementar - de qualquer investigação porque decorrentes de um acordo que não chegou a se consumar, ou que, se consumado, perdeu seu sinalagma e sua base objetiva. Pensar diversamente seria admitir que o Estado poderia agir de forma desleal, em atentado à segurança jurídica e à confiança legítima.

Pierpaolo Cruz Bottini e Flavio Luiz Yarshell são, respectivamente, advogado e professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP; advogado e professor titular da USP

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